Resenha - A Terra dos Loucos

03 maio 2021

 


Senhor Montes, rico e morador de uma cobertura em um apartamento para pessoas com dinheiro, vê aleatoriamente um dos comerciantes com quem tinha contato surtar e precisar ser contido. Isso, que no começo estava sendo falado por todos, debochado e passado até despercebido, foi o começo de uma decadência da humanidade.

De um dia para o outro, a televisão noticia mais casos como o acontecido e, logo, o caos se instaura por todos os lugares. Todos estão ficando loucos e em larga escala; não se sabe o motivo; não há tratamento; não há como prever até quando alguém ficará são. O medo e o instinto de sobrevivência são o que mais importa nessa sociedade colapsada.

Não querendo ficar sozinho, mas também não querendo bancar ninguém, Montes agrupa seis pessoas, também moradoras do apartamento, em sua cobertura, com a regra de que elas mesmas comprariam o que fossem consumir. Ele não agiu de boa fé, mas sim somente pensando em si mesmo e no seu medo de acabar sozinho, embora não aprecie a companhia dos demais.

A narrativa se desenrola seguindo esse grupo de sete pessoas, mas parece que apenas uma delas está preparada para ir ao extremo quando o assunto é viver, ou sobreviver. Loucura, caos, colapso... Esse é o momento mais do que ideal para alguém com uma mente e corações ruins extravasar tudo que tem de pior e realizar os mais sórdidos desejos de sua alma, porque ninguém se importa mais: os loucos não podem reagir, o governo e a polícia não mandam em mais nada, os inocentes ficaram desprotegidos.
 

"O que começou como um fenômeno isolado e sem nexo, tornou-se agora um verdadeiro caos que interferiria, de uma forma ou de outra, na vida particular dessas pessoas. Em primeira medida, foi-se admitida a internação dos que perdiam a sanidade e, se autorizado pelas famílias, a realização de estudos com os recém chegados nos manicômios."



[- Minhas Impressões -]

Até onde você iria pela sobrevivência e para manter sua sanidade? Até onde seria egoísta? Neste livro, vemos os dois extremos de uma luta pela vida em meio a cenas dignas de repúdio. Tudo é contado por um narrador que, embora seja em terceira pessoa, participa da trama se posicionando sobre os acontecimentos e falando diretamente com o leitor: em partes ele diz que não irá facilitar a leitura para o leitor, que não irá explicar tal e tal situação, também amplia e centra a narração quando convém ao momento, além de outras coisas. 

Esse estilo de narrador foi o que me chamou atenção no livro, pois ele tem um ar de deboche e por vezes soa engraçado ao narrar, mesmo que fazendo isso de forma séria. Ele não tenta ser imparcial em alguns momentos, principalmente quando aponta algum defeito na personalidade de um personagem. Ele critica, filosofa, se e nos pergunta sobre as características. Isso fez com que eu entrasse mais ainda na trama e nas reflexões que ele trouxe.


"Perdoem-me a velocidade com que as cenas finais estão sendo expostas. Na verdade pensei em fazer isso propositalmente, com a intenção de deixar a narrativa menos repetitiva, já que o sofrimento deles não é mais um mistério..."


A estrutura do livro é bem diferente do convencional que costumamos ler. Quase não há divisão de capítulos, os parágrafos são grandes e não há travessão nos diálogos, nem espaços ou muita pontuação. Isso parece estranho a quem nunca teve contato com esse recurso narrativo, porém, quem já leu Saramago irá se encantar com o estilo de escrita, bem parecido com o do autor português. Esse ponto não deve ser motivo de críticas, como por exemplo: dificulta a leitura. Na minha concepção, enriquece ainda mais a leitura! Pois assim somos levados a prestar atenção em cada parte, nos esforçar para entender quem disse o que, quem pensou o que e qual parte é do narrador, ao mesmo tempo que tudo isso se mistura de uma forma única. No começo, isso fica sim confuso, mas não desistam, logo a narrativa começa a fluir e você vai adentrando em um mundo novo e conhecendo um novo estilo de recurso literário.

A linguagem do texto é acessiva, mas também é rebuscada e, ao ler, senti que toda a escolha do léxico foi muito bem pensada para compor os parágrafos. Senti que o autor realmente teve uma preocupação muito grande com seu texto, pois não é fácil escrever narrativas como essa se valendo de recursos pouco utilizados, e as divagações do narrador foram sempre muito profundas e precisas, sem muita enrolação, mas com um peso grande.

O escritor domina muito essa técnica: fazer o texto ser denso e pesado e, ao mesmo tempo, não dar muitas descrições das cenas ou falar demais sobre certo assunto. O livro é bem curto, porém suas páginas foram tão bem utilizadas que foi o suficiente para completar a história e nos apresentar perfeitamente àquele mundo caótico.

Ignácio Montes é o personagem principal, é o único dos sete que possui nome e de quem sabemos um pouco mais e acompanhamos momentos antes de tudo colapsar. Sutilmente, o narrador vai inserindo informações sobre ele durante isso. Desde o começo senti que ele tinha algo errado, pois as pessoas pareciam não gostar dele e ele também não se dava ao trabalho de ser sociável e gentil. Vivia em sua bolha de dinheiro, até que, após os acontecimentos, cansou de ver de cima da sua cobertura tudo dando errado, ele precisava de companhia, então abrigou seis pessoas apenas para não estar sozinho. Porém, no que diz respeito a dinheiro, era cada um por si.
 

"Ignácio se achou na condição de opressor, mas se esqueceu que o caos fazia com que as pessoas desejassem mais sobreviver do que enriquecer, o que as torna iguais, exatamente como vieram ao mundo."


Senhor Montes começou a se mostrar uma pessoa com desejos obscuros, que foram ganhando mais coragem quando percebeu que o mundo estava decadente demais para se importa com seus comportamentos absurdos, o que deu vida a realização de seus maiores desejos inapropriados, principalmente, o sexual. Um dos passeios que ele faz, no começo, é uma ida ao manicômio, para ver o que estava acontecendo e encontrar uma mulher com quem ele havia conversado dias antes. Ao chegar lá, ele a viu e se sentiu no direito de tocar nela sem permissão apenas porque a mulher está louca e não luta contra o abuso. Essa é apenas uma das muitas cenas protagonizadas por esse ser desprezível, que me gerou revolta do início ao fim.

Sobre os outros personagens, pouco se sabe, apenas o que falam enquanto estão todos reunidos. Porém senti que isso não era relevante para a história, a relevância está justamente na interação entre todos eles e no que farão para sobreviver juntos e manter suas sanidades. Isso é muito bem explorado e conforme o caos aumenta vemos essas relações se estreitarem cada vez mais, porque alguns não estão dispostos a tudo por suas vidas. Ainda há compaixão, amor, empatia e a vida faz sentido enquanto houver a chance de serem salvos e encontrarem mais vidas. Porém, alguns extremos foram alcançados e muitos valores foram postos a prova.


Temos uma crítica bem grande às leis, ao papel do governo, a questão de médicos e como ninguém estava preparado para lidar com uma situação dessas. É interessante ver como tudo acontece, mesmo que vagamente, pois o narrador foca mais no grupo do que no contexto externo. Ainda assim ele retrata a violência de forma quase banal, mas se incomoda com isso e puxa reflexões. Vemos como a relação do homem com o poder gera um egoísmo, mas tudo se perde em momentos como esse porque o dinheiro não tem mais valor algum.

O maior ponto aqui é animalização do ser humano, que perde sua dignidade e entra em conflito entre a moral e o instinto de sobrevivência. Todos pensam em si, mas esquecem-se dos loucos e de como estão sendo tratados de forma desumana. No começo, temos um manicômio, camisas de força, quarentenas, que logo não se sustentam mais.

Passamos a decadência total, ao machismo, presente em qualquer sociedade e muito mais em uma que regrediu ao estado primitivo, ao abuso sexual, aos mais pobre que precisam roubar e então se instaura um cenário de guerra: lutas, mortes, crimes impunes... Portanto, há muito gatilhos aqui, mas todos são colocados com um propósito e o narrador jamais deixa de fazer reflexões acima disso, levando os leitores a mesma coisa.

O que no começo víamos de forma rápida, mais para o final é explorado mais: o que aconteceu com os loucos? De que forma continuar sobrevivendo? Foram partes angustiantes demais, que aumentaram ainda mais a tensão sentida durante todo o livro. Nesse momento, o narrador passa a ampliar o espaço de sua narração, fazendo com que a gente entenda a gravidade da situação.

Outro recurso que gostei muito foi o narrador dar possibilidades de interpretar um mesmo fato, mas não dizer qual a certa. Isso faz a gente ficar pensando e pensando em todas elas e quais são mais plausíveis.

Um dos dilemas presentes aqui, que não poderia faltar devido à temática, é o eterno questionamento sobre Deus. Os personagens se questionam muito do que seria certo ou errado na visão de Deus, além de, claro, se perguntarem sobre a vida: o que nos faz viver é o medo da morte ou sobrevivemos pela esperança da vida?


"Enquanto muitos delineiam suas vidas, em busca do prazer, será que só não o buscavam por terem a sensação de saúde quando o alcançavam? Será que todos buscam a felicidade simplesmente por ela estar desassociada da morte?"


A leitura foi ficando cada vez mais intensa e, no final, teve uma carga pesada demais. Não sei se fiquei horrorizada com os fatos, ou se não me surpreendeu devido ao contexto, mas que eu não esperava por um final daqueles eu não esperava. Foi duro, cruel, difícil, muito difícil de se ler e pensar. Embora eu esperasse por algo daquele tipo, achei que a morte foi algo leve demais, enquanto nos olhos de outro a vida seria uma injustiça. Foi quase engraçado pensar que se viu uma escapatória de pecados na morte, pensando em um Deus, dadas as circunstâncias.

Enfim, esse livro me surpreendeu do começo até o final. Eu gostei do tema, não só por estarmos vivendo uma pandemia, mas a questão da loucura foi interessante de ser abordada, mesmo que mais por cima. No final, os sãos são os verdadeiros loucos. O estilo de escrita do autor é fantástico, diferente, o livro é muito bem revisado, pensado e composto. Eu acabei lendo em mais ou menos quatro dias, porque, por mais que seja pequeno, tem uma carga pesada forte que faz a gente pensar muito.

Apenas achei o tempo da narrativa confuso, não consegui me localizar muito bem, mas isso não fez tanta diferença pra mim. Também senti falta de falar mais sobre o que aconteceu com o governo, explicações, sobre outras pessoas também, porém entendi que a proposta não era essa.

Eu recomendo, sim, esse livro para todo mundo, para que abram seus horizontes em novos tipos de escrita e para temas que são importantes e diferentes dos retratados popularmente. Nele contém muitos gatilhos, assuntos fortes, mas são necessários para se discutir a humanidade desumana. Será que não estamos quase vivendo nela?


"Talvez seja necessária uma dose de loucura para compreender a vida..."










Livro: A Terra dos Loucos
Cortesia: Honorário Batista ( Autor Parceiro)
Número de páginas: 161
Skoob
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Em um mundo no qual a loucura se propaga como uma peste, seis pessoas, unidas pelo único propósito de manterem suas sanidades intactas, enfrentam as mazelas de uma sociedade que, embora desigual e corrupta, renega seus privilégios e castiga, pela primeira vez, todos os indivíduos sem qualquer distinção de classe. No entanto, o famigerado senhor Montes, dotado de uma sorte tão grande quanto sua maldade e seu dinheiro, sempre muitíssimo mais preocupado consigo mesmo do que com os outros, traz a narrativa um caráter fúnebre e amedrontador, que supera em grande escala o tão justificável medo da insanidade.





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