"Clara acordou com pancadas desferidas contra a porta principal, Quem poderia ser tão cedo, levantou-se a moça de seu leito jovial e ligeiramente grosseiro, digno de uma boa casa de campo, não necessariamente uma, já que estas servem muito mais para férias ou passeios [...]"
Começo esta resenha me dirigindo diretamente a você, leitor, para já declarar que maiores informações sobre o enredo que são difíceis de serem reveladas. A narrativa curta, em torno de quase cinquenta páginas, apresenta inicialmente dois personagens: Clara e Esdras. Eles são casados e moram isolados da cidade, portanto, não têm mais contato nem com familiares e isso está ótimo para os dois. Pelo menos por enquanto.
Clara é a típica dona de casa, cuida de seu marido e o agrada em tudo. Ela faz o possível e o impossível para isso, enquanto Esdras parece não prestar o devido reconhecimento a ela. Logo, o casamento mostra-se decadente, pois ela gostaria de ter mais a atenção de seu marido e, infelizmente, por morarem no meio do nada, ela não tem o convívio social necessário para decidir mudar de vida. Para decidir o deixar. Então eles vivem em conjunto, um suportando o outro da maneira que estão e fingindo ser uma relação estável.
Porém, essa estabilidade rompe com uma batida na porta de casa no meio da madrugada. Clara fica extremamente assustada, pois quem poderia ser? Eles não recebem visitas. No começo, seu marido não dá importância para isso, mas de tanto ela insistir, ele resolve ver quem seria. Essa é uma premissa simples, o leitor já se sente desconfiado e sabe que, com essa visita, a situação irá se desequilibrar. Porém, simples não deixa de ser tenso, desconfortável e caótico. Ao pensar apenas no corriqueiro a respeito de filmes de terror que possuem essa premissa, o leitor é levado para um lado de pensamento completamente oposto aos acontecimentos que irão ser apresentados.
"Esdras, há um estranho batendo em nossa porta [...]. Você enlouqueceu, Ele não parece perigoso, e está frio, Logo irá amanhecer, ele poderia muito bem ter caminhado para a estrada, Olha, assim que a luz surgir eu peço para ele ir embora, está bem, Não, mande-o agora, Eu não posso simplesmente mandar-lhe embora [...]"
Embora seja um desconhecido, Esdras resolve o abrigar em casa. Por que não? O homem está sozinho, na noite e sem transporte. Não custaria nada deixá-lo entrar. Clara evidentemente acha perigosa essa atitude do marido, mas ele não quer ouvir a opinião dela sobre isso. A partir desse momento, fica nítido para ela o quanto Esdras dá credibilidade para qualquer um, menos para ela.
Com a chegada do homem, ela também percebe que desconhece muitas coisas sobre o marido. O narrador nos dá de forma mais privilegiada a visão de Clara sobre os fatos, então vemos a confusão e o sofrimento dela ao ter sido trocada pelo viajante. Então ela começa a refletir sobre sua vida, com alguns saltos até a infância, e se vê como submissa, obrigada a aceitar aquela realidade que está se tornando cada vez mais hostil e a deixando cada vez mais subjugada às vontades não só de Esdras, mas também, agora, do desconhecido que já virou amigo. Dessa forma, ela ouve risadas pelas costas, enquanto cozinha, ouve xingamentos, ouve que deveria ser melhor ainda para o marido. Ela logo se coloca em uma posição de inferioridade, sendo escrava deles.
Nesse ponto, o tema central da novela já é identificado: o machismo. Ele é representado da maneira mais sutil, como no começo do livro, até a maneira mais violenta que poderia ser: a morte. Mas quem morreu eu não irei contar. O narrador nos mostra que Clara entende a situação em que está vivendo e que, realmente, não há alternativas para sair disso. Já que estava cômodo, com o marido apenas não lhe dando atenção, ela foi ficando. Porém, o desconhecido não foi o único que bateu à porta de sua casa.
Mais homens chegam e esses já se dizem amigos de Esdras, o que deixa Clara em uma confusão intensa e sentindo que não sabe nada sobre o marido. Os hóspedes são arrogantes com ela, sujam tudo para que ela limpe, cozinhe e ainda faça sala para eles - pois convenceram o marido dela de que ela não poderia ir se deitar enquanto houvessem visitas. Já é percebido o quanto essas visitas têm influência sob Esdras, controlando agora a maneira como ele trata a própria mulher. Assim, ele vai ficando cada vez mais violento e cada vez mais tem essa violência validada pelos "amigos".
"Mulheres são insuportáveis, ela não entende que a casa também é minha, Achei ela esquisita desde a hora que cheguei, Sério, Sim, por que um homem como você continua com ela, Acredita que eu seja muito bom para ela, Claro, sem falar que ela nem é tão bonita assim, Tem razão [...]"
Se você está pensando que até aqui está confuso, é porque é confuso mesmo. Durante a leitura, fiquei com meus olhos arregalados por longas páginas e tudo que eu pensava era "não é possível uma coisa dessas!", de tão absurda que a premissa foi ficando. Para não dar mais spoilers, apenas quero ressaltar que, em algum momento, Clara resolve revidar essa violência e responde à altura, com muito deboche e "pregando peças" nos convidados. Ela só não contava que seria deixada sozinha com um dos visitantes e que isso decidiria seu futuro.
O narrador dessa história é um dos tipos que mais gosto, aquele que faz inferências a respeito do que está acontecendo. Sendo assim, narra em terceira pessoa, mas como disse, mais para o lado da Clara. Apesar disso, ele diz que sabe tanto quanto o leitor sobre a vida do casal. Ele também utiliza palavras fortes nas descrições, tem no começo um certo lirismo ao narrar sobre a vida dos dois no campo. A escolha de palavras é feita de forma minuciosa e carregam muito mais do que apenas seu sentido literal. É bem difícil não querer continuar a leitura depois de ler as primeiras frases, pois a narrativa se mostra enigmática, reflexiva, provocativa e depois, brutal por causa do corte de cena.
Todas as cenas são muito angustiantes, porque se percebe que algo ali não está certo. Ainda mais depois da chegada de pessoas estranhas, que se diziam não ser estranhas, da virada de humor do marido e da percepção de Clara sobre sua relação amorosa, que na verdade não tem nada de amor. Em certos momentos, Esdras chega a hesitar seguir algum comando dos outros homens, pensando na esposa, mas ele sempre sucumbe para o lado deles, a deixando desamparada. Eles tentam de toda forma aliená-la, a fazer se sentir louca. As cenas de ação são intensas, há perseguição, nervosismo, alucinações. Tudo isso de forma rápida, pois foi de forma repentina que a vida do casal virou do avesso. Além disso, as cenas são muito visuais, passam quase que como um filme dentro da cabeça de quem lê. Assim, a tensão mantém-se em toda a narrativa.
Essa não é uma história para ser explicada. É uma história para ser sentida ao máximo.
Acompanhar a "iluminação" de Clara perante sua situação de submissa foi gratificante. Parece que tudo aconteceu para provar a ela que sua realidade não era boa, mas para poder perceber isso ela precisou ir ao inferno e voltar. Ficou nas mãos de um povo que não a conhecia, somente a julgava pelo o que os homens diziam. Não havia empatia, não havia ninguém que quisesse escutá-la de verdade e, quando Esdras percebeu que estava sendo manipulado, ao ver um povo manipulado pela mídia, talvez tenha sido tarde demais. Ele já não poderia mais ser um bom marido, pois sempre a abandonou quando ela precisou. Sempre disse que ele fazia muito por ela e ela nada por ele. Então nada menos justo que Clara fazer por ela, mesmo do jeito violento que tenha sido a trajetória.
"reparamos que o macho vale-se meramente daquilo que ele vê ou sente, justificando a erotização feminina enquanto carne e a fraqueza intelectual expressa melindrosamente na cena supracitada como relativamente óbvia, permitindo a exclusão definitiva de que os seres humanos pouco refinados que não carregam traços de nobreza comportamental resumem-se à expressão de sua vontade de poder, limitando suas ações à meras tentativas de controle, e Clara sabe disso [...]"
Fiquei realmente bastante surpresa, estarrecida. A elaboração em cima de uma premissa simples atingiu um pico muito alto com essa questão psicológica que dura a narrativa toda. Entendo que Esdras também sofreu disso, mas antes ele já era um problema na vida de Clara. Eles viviam como "gente do mato" quando ela poderia ter vivido uma vida muito melhor na cidade. O psicológico dela precisou ser destruído para se reconstruir de uma forma diferente, mas nesse processo ela levou um leitor indignado junto.
Não sei bem mais como definir o que li. Uma explosão de sentimentos revoltantes, difíceis de digerir, com cenas brutas, ataques de violência tanto simbólica quanto física. Tudo isso colaborou para um texto que fica preso na mente do leitor, que causa alguma coisa dentro de quem lê. Quem nele entra, não sai mais a mesma pessoa, assim como aconteceu com Clara em sua casa.
Livro: A Cria da AlvoradaAutor Parceiro: Honorário BatistaNúmero de páginas: 33Amazon / SkoobClara é uma mulher do campo que vive com seu marido Esdras em uma casa aconchegante, mas, em um determinado dia, sua rotina muda drasticamente. Nesta estória, aparentemente sem sentido, veremos a supressão da voz feminina e a tentativa de emancipação de uma mulher que sempre deu o máximo de si para seu marido e agora vê sua vontade usurpada pelo alheio. A novela retrata a cruel realidade de mulheres que lutam contra a opressão masculina e buscam, um dia, viver em igualdade. Repleta de personagens tipo, a obra traz uma visão revoltante da sociedade em microescala e expressa o imaginário doentio daqueles que preservam as estruturas conservadoras e retrógradas do poder masculino.
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