Resenha - Ensaio sobre a cegueira

22 janeiro 2019


Título: Ensaio sobre a cegueira
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 312
Skoob
Onde comprar: Amazon / Saraiva

Uma terrível "treva branca" vai deixando cegos, um a um, os habitantes de uma cidade. Com essa fantasia aterradora, Saramago nos obriga fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu.Um motorista parado no sinal se descobre subitamente cego. É o primeiro caso de uma "treva branca" que logo se espalha incontrolavelmente. Resguardados em quarentena, os cegos se perceberão reduzidos à essência humana, numa verdadeira viagem às trevas.
O Ensaio sobre a cegueira é a fantasia de um autor que nos faz lembrar "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". José Saramago nos dá, aqui, uma imagem aterradora e comovente de tempos sombrios, à beira de um novo milênio, impondo-se à companhia dos maiores visionários modernos, como Franz Kafka e Elias Canetti. Cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Num ponto onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago nos obriga a parar, fechar os olhos e ver. Recuperar a lucidez, resgatar o afeto: essas são as tarefas do escritor e de cada leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos".


"[...]o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego."


E é exatamente assim, do nada, de uma hora para a outra que no meio da sua rotina diária, um homem se “vê” cego. Prontos para esta que será uma jornada nada agradável? Então vamos lá!

Sem qualquer explicação uma cegueira aflige um cidadão qualquer da nossa história. Porém logo fica-se sabendo que não é uma cegueira comum, afinal, ninguém fica cego de uma hora para a outra, é uma cegueira um pouquinho diferente...

Após atingir nosso paciente-zero, o caos começa. Como em uma epidemia, aos poucos aquele microcosmo aparentemente normal, acaba dando lugar a um cenário digno de seriados de mundo pós-apocalíptico. O clima é de pura tensão, afinal todas as histórias de zumbi começam exatamente deste jeito, só que aqui, zumbi nenhum é o problema, e sim os próprios seres humanos. Tenso!!

Logo após esta tragédia repentina, o primeiro-cego, assim chamado até o fim de nossa história, aceita a ajuda de uma “boa alma” e consegue chegar até seu apartamento, para esperar sua esposa e ser levado a um médico. Mas como nada é por acaso, o bom samaritano, demonstra suas verdadeiras intenções mais do que depressa.

"Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o carro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola, muito pelo contrário, o que ele fez não foi mais do que obedecer aqueles sentimentos de generosidade e altruísmo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores características do gene humano, podendo ser encontradas em criminosos bem mais empedernidos do que este, simples ladrãozeco de automóveis..."

A partir daí que nos damos conta de que nesta história, não existem heróis e vilões, e sim, nada mais do que simples seres-humanos. Nada do que vai acontecer daqui por diante é uma luta do bem contra o mal ou algo do tipo, e sim uma amostra do que nós seres humanos somos capazes de fazer ao sermos expostos a situações peculiares.

Chegando a visita ao oftalmologista, somos lá no consultório, apresentados a maioria dos personagens que continuarão conosco ao longo da história. Uma mulher com conjuntivite, que está usando óculos-escuros, vira logo a rapariga dos óculos-escuros, um senhor com catarata, logo é conhecido como o velho da venda preta, uma criança com sua mãe, é o menininho estrábico, e o próprio oftalmologista é conhecido como o médico. Daí a gente já começa a perceber que ninguém nesta narrativa tem nome. Todos são conhecidos por aquilo que aparentam ser, o que passam de imagem. Estas pessoas poderiam ser eu, você, seu vizinho, qualquer um. Como qualquer boa epidemia, ninguém está a salvo após a visita deste primeiro-cego. Todos os que tiveram contato com ele logo serão acometidos do mesmo mal e irão compartilhar seus destinos.



O médico oftalmologista após ficar “cego”, informa as autoridades de sua condição e dos riscos que esta doença ao se espalhar poderia causar e mais do que depressa é enviado a um lugar de quarentena. Sua esposa então, resolve acompanhá-lo e, para isso, tem que fingir a doença também. Um verdadeiro ato de amor.

"Só posso leva-lo a ele, são as ordens que tenho, a senhora saia. A mulher, calmamente, respondeu, Tem de me levar também a mim, ceguei agora mesmo."

Logo o casal descobre que será acomodado em um antigo sanatório, a fim de ficarem separados da população saudável, mas será que isto realmente é para o bem deles? Será que quem ficou de fora, está realmente a salvo? E é nesse cenário horrendo onde os personagens são desnudados até a alma e um verdadeiro raio-x do ser humano começa a acontecer.

Imaginem-se na seguinte situação: cegos, todos reunidos em um sanatório, deixados à própria sorte, com uma mínima ajuda externa de militares, que nada mais oferecem que caixotes de comida duas vezes ao dia (isso quando estão de bom humor). Caos total. E é lá, onde nosso amigo primeiro-cego encontra nada mais nada menos do que o ladrão de seu carro. Imaginem que consequências isso pode acarretar.

Mas no meio disso tudo, temos nossa protagonista enfim, a mulher do médico, a única capaz de enxergar ali. Uma bela de uma vantagem, uma benção que naquela situação de contágio, ela é a única imune a esse mal. Mas, será mesmo que isso é uma vantagem? Logo descobriremos que não é bem assim.

"Alguns irão odiar-te por veres, não creias que a cegueira nos tornou melhores, Também não nos tornou piores."

A partir deste ponto é que tudo começa a ir de mal a pior, e muitas vezes, nossa protagonista desejará perder a visão. Imaginem que depois de algumas semanas, vamos dizer que a tentativa de conter a epidemia falha e muitas pessoas são confinadas ali naquele sanatório. E quando eu digo isso, me refiro a pessoas do mais variado tipo, inclusive aqueles que “enxergam” ali a possibilidade de demonstrarem suas verdadeiras facetas. A comida se torna o bem mais precioso naquele lugar e por ela, tudo será feito, e é aí que este livro nos causa as mais difíceis sensações. Sentimos nojo, repulsa, pena, raiva e compaixão. Os personagens tanto principais quanto os secundários têm a sua vez de serem bem explorados, ninguém fica de fora, e todos nós acompanhamos seus destinos, o final.

"É que vocês não sabem, não o podem saber, o que é ter olhos num mundo de cegos."

O que significa a visão para a humanidade? Será que é o que nos faz racionais...ou será que o que nos faz racionais é ter visão? Fico pensando, será que podemos nos considerar seres evoluídos, quando na falta de enxergarmos, agimos e nos entregamos aos mais cruéis instintos? A história continua muito além disso, porém a experiência de acompanhar as labutas que nossos personagens irão passar é impagável, e acho melhor parar por aqui. 

"Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."


A edição da Cia das Letras possui diagramação confortável e uma bela arte de capa. O estilo narrativo do autor é bem peculiar, ele não faz uso de travessões nos diálogos, e sua pontuação é bem diferente, carregada de parágrafos um pouco mais longos e muitas vírgulas. Mas, a experiência de leitura é bem fácil de se acostumar depois que se pega o jeito. Uma dica, caso esteja enroscando é ler alguns trechos em voz alta, e logo tudo fará sentido, acredite!!!


Enfim, este livro é excelente e uma verdadeira jornada através do ser humano, uma verdadeira experiência única de leitura.



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11 comentários

  1. Olá!
    Parabéns pela resenha, muito bem feita.
    Fiquei instigada a ler este livro, ainda não li nenhuma obra deste autor consagrado, mas está na minha meta de leitura.
    Abraços

    www.vancarlos.com

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  2. Saramago na sua forma mais amena! rs
    Quando este livro foi lançado há um bom tempo, não via a hora de comprá-lo. Na época foi uma fortuna.
    O autor conseguiu desenhar toda uma sociedade cega. Seus problemas, sua loucura.
    Uma artimanha gostosa de mostrar a todos nós que tudo pode nos ser tirado do dia para a noite!
    Recomendo também o filme que é maravilhoso!!!!
    Atuações impecáveis, cenário, fotografia!
    Beijo

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  3. Ótima resenha, li logo que foi lançado ,havia esquecido muitos detalhes que sua resenha apontou.
    Senti uma angústia imensa quando li essa história, pra mim parecia uma tragédia anunciada, um apocalipse social, sabendo como Saramago escreve suas obras sempre tem um cunho social muito forte, escritor combativo.
    Tive muita dificuldade com a edição , outra característica peculiar do escritor, não aceita ( ou aceitava) que seus livros fossem modificados na pontuação. ..às vezes lia sem pausar ...
    Eu acredito que ele não trata apenas da falta de visão , como uma enfermidade física apenas, acho que a mensagem que esse livro deixa é bem mais profunda. Deve se estar atento às entrelinhas.
    Bela resenha, deu vontade de reler.

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  4. Ao concluir a resenha, notei que tive variações de sentimentos a cada trecho. Não deixa de ser uma historia curiosa, digo, pela ideia inicial (todos ficarem cegos) mas me pareceu algo bem simbólico, certo? Tipo figurativo, como se a cegueira e suas consequências fossem para nos mostrar o que realmente somos e o que importa, nada é o que parece ser. Confesso que zumbi/apocalipse/pós apocalipse nunca despertou meu interesse, mas como vejo que esse não é foco, é outra historia. Sei que esse livro é um clássico e assim como tu comentou, sua linguagem não é muito fácil ou que flua, mas o fundo intelectual e de descobertas que o leitura deve desenvolver e presenciar deve valer a leitura. Ele está na minha lista de desejados mas preciso do momento oportuno para ler. Tua dica em ler em voz alta foi aceita, acho que vai ajudar.

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  5. Eduardo!
    Saramago tem o dom de buscar o mais profundo da natureza humana e tentar repassar em seus livros.
    E nesse em especial, o caos é instalado e se volta os primórdios.
    O livro é soberbo e sua resenha ficou excepcional, muito bem analisado. Parabéns!
    Cheirinhos
    Rudy

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  6. Conheço esse livro apenas de nome, é a primeira vez que leio sobre.
    Uma leitura caótica e repleta de metáforas.
    Interessante a maneira como aborda o ser humano e suas inúmeras facetas, me parece que mostra a verdade nua e crua.
    E essa resenha me remete a uma frase "o pior cego é aquele que não quer ver".
    Apesar dos questionamentos, não sinto um interesse nessa leitura no momento.

    Beijos

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  7. Sempre quis ler esse livro do Saramago, mas tenho aquele velho receio com clássicos, principalmente devido a linguagem, mas nessa obra acredito que o problema seria s diagramação: a falta de travessões e parágrafos longos. Sobre a história: eu não imaginava que o autor nos traria uma alta reflexão sobre o ser humano em Ensaio Sobre a Cegueira, imaginara ser uma jornada de um protagonista cego, me enganei de uma forma super positiva. O principio de Saramago sobre mostrar a verdadeira face, vontades e virtudes do ser humano através de um sentido essencial, ou melhor a falta dele, foi uma ideia sensacional e uma ótima forma de criticar e fazer o leitor parar e analisar a sociedade e a si mesmo. Fiquei ainda mais curioso sobre a história!

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  8. Olá! Apesar de ser um autor daqueles que a leitura é praticamente obrigatória, confesso que ainda não me dei à oportunidade de conhecer um pouco mais de sua escrita. A proposta da história é super interessante e definitivamente lembra um pouco sim aquelas histórias de zumbis e fim do mundo. Ai, ai, seres humanos sendo seres humanos hein, e demonstrando do que são capazes quando o assunto é cada um por si, acredito que nós seremos a causa do fim dos tempos, afinal nossas atitudes estão mostrando, cada vez mais, que essa teoria pode estar muito próxima e correta (#medo). Espero que a leitura nos proporcione uma reflexão de nossos atos e que repensemos o caminho que estamos seguindo.

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  9. Oi Eduardo, tudo bem?
    Eu já ouvi falar desse livro, mas nunca tinha parado para saber do que se tratava. Minha mãe ja leu e disse que gostou bastante, por isso fiquei bem curiosa. Pelo jeito o livro nos da uma bela lição. Quero muito conhecer.
    Beijos

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  10. Achei maravilhosa sua resenha, achei super interessante a temática do livro e ao que ele se propõe, vai pra lista de próximas leituras. Parabéns

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  11. Lembro que estudei sobre o autor durante a escola, mas nunca cheguei a ler um livro dele. Esse livro traz a reflexão de como seriamos sem um dos principais sentidos. Nós podemos pensar num mundo onde não se dá para ver não podemos ser julgados e em como seria o ser humano com esse pensamento. Outra coisa que achei interessante é a parte do confinamento, acho muito legal essas histórias que mostram como a sociedade convive em grupo em lugar com recursos limitados. Espero um dia ler essa história, pois ainda sou receosa com clássicos.
    Adorei a resenha.

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